Crônicas de um Homem Morto

25 outubro 2012

Simplificar - Parte XL


Aqui há um caderno velho que não recebe a visita da caneta há muito tempo. Nele, estão ideias de um passado distante. Muitas incompletas, outras que não encontram mais eco na minha realidade. E há isso:

Livros são apenas papéis e palavras
Amizade é apenas frases e abraços
Quadros são apenas tinta e tela
Torcer é apenas gritos e gestos
Amor é apenas palavra e promessa
Música é apenas vibração e versos
Encontros são apenas ansiedade e surpresa
Férias são apenas pausa e alívio

Morrer é apenas lápide e rosas

Simplificar também pode ser cortar.

14 outubro 2012

Ser seletivo - Parte XXXIX


Nós somos as nossas escolhas. Cada uma delas ajuda a nos definir, a dizer quem somos. Vamos a uma história.

Naquele passado distante e enclausurado, havia uma moça que tinha o estranho costume de chorar às segundas-feiras. Não era apenas no início da semana, mas parecia que os acontecimentos nas suas folgas minavam o seu ânimo – que parecia ser reconstruído nos outro quatro "dias úteis".

Qualquer coisa alterava o seu humor. Só que um telefonema ou a ausência deste eram ainda mais impactantes. Mesmo que não me importasse, eu me aproximava uma vez ou outra para tentar entender aquelas súbitas alterações emocionais.

Quase sempre havia alguém a acudi-la. Os lamentos eram seguidos de soluço e frases encorajadoras como "não fique assim", "ele não te merece", "você vai encontrar alguém especial" e "você é uma boa pessoa" e outras afirmativas vazias como estas.

Pus-me a pensar. A causa do sofrimento, então, era outra pessoa. Ou melhor, outras. Não era possível que alguém repetisse o mesmo comportamento com o mesmo sujeito. Passei a observá-la melhor.

Eu não tinha mais o que fazer da minha vida e sempre chegava cedo. Parava no café e por lá ficava a observar como os cafés repousavam nas mãos por muito tempo, muito mais que o desejado por aqueles que têm sala exclusiva nesse andar.

Entre um gole d'água e outro, chegou a vítima dos homens. Óculos escuros na face, ignorou solenemente aqueles que estavam no seu caminho. De fato, os seus passos pareciam apressados demais para um escritório. Eu sorri.

Passei a repetir o ritual. Ela, como se houvesse combinado, cumpria com maestria o seu papel, repetindo com exatidão o que havia feito na primeira vez. Até que, uma manhã, houve um "bom dia" e um sorriso. Ele tinha uma sala exclusiva. Eu sorri novamente.

Enxerguei, ali, um possível padrão. Nas outras vezes, o cumprimento veio para mim, ou para algum outro vizinho de baía que estava no seu caminho e só. Pensei em timidez, mas logo a descartei a presenciar um pedido para aquelas que zelavam pela limpeza. E um cumprimento para um "sala exclusiva" distante.

Aproximei-me e perguntei:

- A sua seleção é método e, como tal, é indicativa de muita coisa. Você ainda acredita no que você é?

Finalizei com um "bom dia" e voltei para o café.

05 outubro 2012

Ao nível do mar - Parte XXXVIII


No ônibus, o meu companheiro de banco não esteva tranquilo. A sua roupa estava bem alinhada, a barba bem-feita e o cabelo meticulosamente penteado para trás. Porém, pela pele mal conservada e uma pequena dose de desconforto com as roupas, podia-se cravar que aquele sujeito estava indo para uma entrevista de emprego. Com a pasta transparente na mão, a aposta nesta hipótese era uma certeza de vitória.

Fiquei em silêncio. Antes de saltar, estendi um papel a ele e tomei o meu rumo. Reproduzo o conteúdo.

"A mediocridade é a mola-mestre das relações. O objetivo é manter-se no mesmo nível ou progredir. Não é possível fazê-lo com gente melhor do que você. Ou, ao menos, que aparente ser melhor que você. Assim, elogie para ser elogiado - e os faça crer no que você diz.

E se o padrão dos destinatários for o padrão do ambiente, sair-se-á melhor quem souber reconhecer a suposta qualidade existente. E como ela é irreal, a ilusão é realçada pela rede de elogios - e quem souber alimentá-la levará vantagem.

Lembre-se: seja natural. E dê bom dia."

Eu adoraria ver a expressão do candidato ao final da leitura. Na verdade, nem era preciso, eu ainda tenho os meus álbuns de fotografia.

29 julho 2012

Papéis - Parte XXXVII


Eu poderia, a qualquer momento, acreditar no que vejo. Estou sentado, longe do que me afeta, mas prefiro crer no meu sorriso - ele, ao menos, me parece real.

Vejamos: para aguentar a realidade eu necessitaria de algum véu. Então, prefiro adiantar-me e deixar o serviço mais fácil para todo mundo.

Uma longa trama ou ser um mero expectador: ainda existe gente que escolhe ficar de fora?

Sim, existe. Mas, em geral, eles só fazem uma aparição.

Sem audiência.

07 maio 2012

Bálsamos - Parte XXXVI


Um dia difícil pode ser qualquer um,
com mil compromissos ou uma topada,
ou indiferença ou sem gargalhada,
Ou contentar-se com algum ou nenhum.

Uma pedra pode causar uma mudança
Sem duvidar se estava no caminho.
É um risco inerente sairmos do ninho,
Mudança não é o objetivo da andança?

Bálsamos tornam-se tudo que ofusca.
Uma pausa, um objeto, um suspiro.
Sem eles, pensamos: "eu me viro",
nos viramos, de fato, à sua busca.


11 março 2012

A dona do vestido - Parte XXXV

Era inegável que, em qualquer outra pessoa, aquele vestido seria tão comum quanto um pão no café-da-manhã. O roçar nos joelhos da bainha ou as alças que pouco cobriam os seus ombros - nada disso era diferente do que podemos ver além da porta de entrada do restaurante semivazio e completamente decadente no qual estávamos.

Porém, as passadas do vestido tinham espectadores, embora não se possa dizer o mesmo para a sua dona em relação ao caminho por ela percorrido. Não fosse a destreza do garçom, o leve amarelo que dominava a sua vestimenta ganharia alguns tons de café.

Sem ligar para o desespero do garçom, tomou para si uma mesa onde havia ainda mais cinco lugares. E em poucos minutos, quatro deles foram preenchidos. Aos cumprimentos, seguiram-se o que eu posso julgar de elogios, sempre acompanhados de um leve sorriso e uma arrumada na mecha que pendia sobre o seu olho esquerdo.

A conversa era animada, com sorrisos, risadas e gestos a pontuá-la. Mas a dona do vestido não parecia conectar em nenhum momento. Quando ouvinte, levava a bebida à boca, como se estivesse procurando distração. Os olhos por vezes ganhavam o infinito, decerto acompanhando a sua imaginação. Nas raras vezes que falava, era através de fases curtas, onde logo era interrompida.  Quase sempre era o membro do grupo que falava mais alto e que não me pareceu ter muita educação.

Enquanto chamava o garçom para dar fim à minha presença ali, a dona do vestido levantou. Procurando a janela, a alcançou com um telefone na mão. Assim, rapidamente, já em frases que pareciam bem mais animadas, falou rapidamente e se voltou ao seu lugar. Em alguns minutos, o lugar ao seu lado seria ocupado.

Ela começou a falar. E voltou a sorrir.

06 fevereiro 2012

As preces - Parte XXXIV

Lembrei-me da época em que eu tinha semelhantes.

Havia um sujeito cuja camisa estava sempre em desalinho com quaisquer normas de elegância. Sobrava pano e as cores há muito haviam perdido o seu tom de fábrica. Aquele suor excessivo, que chegava a afastar a maioria dos membros do sexo oposto, deveria obrigar o dono a muitas lavagens com mais rigor do que o normal.

Porém, o que me chamava a atenção era a devoção àquele velho relógio branco de algarismos romanos com os ponteiros finos e negros que ficava na mesma parede da porta principal de nossa sala, bem em frente às janelas para a rua.

Quando desviava a atenção ao relógio, o sujeito parecia olhar para um altar religioso. Eu o imaginava direcionando preces, rogando votos, suplicando que, sei lá!, o Deus-Tempo interferisse nas horas e as fizesse ganhar velocidade.

Entretanto, a passividade do seu Deus parecia aumentar o fervor. A fé nunca lhe faltava. Com o avançar do tempo, a expressão tomava quase ares de desespero, o relógio tornava-se o seu fiapo de esperança, como se o sujeito se declarasse derrotado diante de todos os seus afazeres e só restassem as suas orações para sobreviver àquele infortúnio.

Era nesse momento que ele mordia o lápis com mais força a ponto de sentir o gosto amargo da madeira a invadir-lhe a garganta. Era o sinal para eu ir tomar um café com os outros.

E eu odeio café.

30 janeiro 2012

Apenas seguindo em frente - Parte XXXIII

Na maior parte das vezes, os sentidos são tão limitados quanto a visão: o seu raio de ação é reto, sem variações, sem surpresas.

É esse o carvão da mediocridade que alimenta a locomotiva que, claro!, só vai para frente, seguindo o caminho dos trilhos.

Sair dos trilhos é acidente.

Deixar de olhar apenas para frente é acidente.

Acidentes devem ser evitados.