Crônicas de um Homem Morto

31 outubro 2010

Explicando a Vida - Parte XVII

- É simples, minha cara: você vai errar, chorar, achar que está acertando, chorar, ter alguns sorrisos, chorar novamente e então, finalmente, falará para os mais novos que a vida foi boa. Depois, os olhará pela janela e suspirará, enquanto decide se remexe ou não nas velhas fotos escondidas no alto de algum armário.

- Mas...

- Não há mistério. Resta saber apenas se o saudosismo virá cedo ou na hora correta.

08 outubro 2010

A Discussão - Parte XVI

À distância, observava os dois discutindo. Impressionava a maneira pela qual os gestos dele pareciam reger as lágrimas dela. Ele, claro, não se importava. Muito menos eu.

O espetáculo continuava. Todos que passavam não hesitavam em dar uma olhada, alguns condenavam; outros, indignados, expressavam a sua revolta através de expressões. Eu ria.

A discussão terminou e cada um foi para o seu lado, exceto as pessoas indignadas. Estas ganharam algum assunto para o jantar. Assim como eu.

06 setembro 2010

"A Turba" - Parte XV

Vozes. Vozes. Vozes.

Hoje, o singular tem necessidade de, a todo tempo, ser o plural. Como se, mantido o estado inicial, fosse desaparecer. Quer dizer, pior ainda, tornar-se-ia insignificante.

Assim, praticamente prostitui-se. Não soma, diminui. E sorri.

Eu sou um pesadelo. Nós somos o paraíso.

E no Jardim do Éden todos são iguais.

- gulp!

19 agosto 2010

Ledo Engano - Part XIV

Ela veio em minha direção e, com uma confiança que parecia inabalável, começou a dizer palavras que, a cada frase, pareciam mais desconexas da realidade.

A todo o momento, ela buscava a confirmação, tanto minha como de si própria, para assim, continuar a falar. As palavras ganhavam mais espaço entre elas, como se quisessem desistir.

Já seu corpo se fechava, os braços não acompanhavam o raciocínio, sendo intermitentes nos movimentos, como se, por alguns instantes, ela se esquecesse de dedicar-lhes atenção.

Consenti com tudo o que ela dizia. Afinal, quem sou eu para negar a uma pessoa o direito de se enganar?

23 julho 2010

A Verdade - Parte XIII

Ela estava sentada em um banco do shopping. O redor dos seus olhos estava bem vermelho e a caixa de lenços ainda estava para fora na bolsa entreaberta. Estava claro que ela havia passado um bom tempo chorando.

Sentei-me ao seu lado, ela suspirou, como se aquela cena já fosse comum e, sem a menor paciência, lançou-me as seguintes palavras:

- O que você quer?

Seria difícil explicar que eu não queria nada. Mas, na verdade, ignorá-la naquele estado seria ainda mais complicado. Quando não sabemos o que fazer, é sinal de que não saberemos mentir. É melhor dizer a verdade:

- Simplesmente vi que você estava chorando e resolvi sentar ao seu lado.

- Mas eu já parei de chorar. Então, você já pode ir embora.

- Bem, mas você não está certa disso, pois teria guardado a caixa de lenços e ido passear bem longe daqui.

- (...)

- Vamos lá, o que houve?

- Ele foi grosso comigo. Precisava dizer que eu sou uma chata e que não me aguentava mais me ver? Ele é que é chato e insuportável!

- Todas as pessoas são insuportáveis, minha querida. As que não são, são apenas covardes ou falsas.

Enquanto ela virava-se para alcançar a caixa de lenços, eu achei melhor seguir o meu caminho.

04 julho 2010

O Sofá e o Controle Remoto - Parte XII

O sofá e o controle remoto são o trono e o cetro do homem moderno. Todo o resto é supérfluo.

Se as relações com os demais seres humanos não nos importam, então, não precisamos de mais ninguém, apenas do controle remoto, para, à nossa maneira, controlar a nossa televisão, que é, na verdade, onde as relações acontecem.

01 julho 2010

Leis Básicas da Convivência em Sociedade - Parte XI

- Olá!

- (...) Olá.

- Pode parecer estranho eu cumprimentá-la, mas, talvez, parecer um sujeito educado e simpático pudesse transformar a minha existência em algo menos miserável, concorda?

- Er...eu não sei o que dizer...

- Não me surpreende. Bem, se você não sabe o que dizer, é sinal de que a peguei de surpresa, certo? E, se você foi surpreendida, indica que você não espera que as pessoas cheguem até você e digam um simples "olá", certo?

(Nesse momento, ele dá um longo passo à frente e ela, com as pernas menores, um curto para trás).

- Er...gulp!

- (tom de voz mais estridente) Então, você calça essa porcaria de tênis todos os dias e ganha as ruas esperando que todos te ignorem, já que o seu único objetivo é desprezar todos que passem por você, exceto, claro!, que algum deles tenha alguma serventia para você. Não é isso, senhorita-da-calça-colorida?

- (os ombros encolhem-se) Não...

- Provavelmente, você está pensando em todos os pés indesculpados que pisou, as ocasiões que um "obrigado" ficou preso na garganta, os olhares não retribuídos...

- (as sobrancelhas encurtam a testa) Não...

- Negação, negação, negação. Você está certa.

- (...)

Ele se afasta e ao longe ela ainda é capaz de ouvir um “Olá!”.