Crônicas de um Homem Morto

19 dezembro 2006

A Fila - Parte V

A fila enganava a todos. Olhando-a, podia-se perfeitamente acreditar que a nossa estada ali seria realmente maior do que o indicado pela quantidade de pessoas à frente.

Ao atentar para um olhar vago, perdido em focos inconstantes e confusos, como se pedisse para ser ignorado, rapidamente pude perceber o quanto a fila não é homogênea, como, na verdade, ela deveria ser.

Os excessos que levaram o olhar a querer camuflar-se dentre as luzes foram em vão. Ou melhor, completamente desnecessários. Mesmo sabendo que deveriam ser tratados como párias, foram covardemente tratados como iguais.

Desisti. Larguei tudo que ainda não era meu e fui embora. Não posso ser o pária dos párias.

12 dezembro 2006

O Engano - Parte IV

Recebi um telefonema. Normalmente, eu não recebo telefonemas. Aliás, eu não atendo telefones, mas, dessa vez, eu abri uma exceção.

Não houve perguntas ou questionamentos. Havia, sim, uma certeza absoluta de que estava sendo feita a coisa certa. Ou seja, a mensagem estava chegando a quem deveria ser o seu destinatário.

Por um momento, cheguei a pensar em interrompê-lo. "Ei, espere, não é a mim que você deve falar essas coisas. Está havendo um engano". Seria besteira. Do outro lado não havia nenhuma preocupação com o que acontecia desse lado. Existia apenas a necessidade de se passar algo adiante.

Ora, quando se quer extravasar, pouco importa quem esteja ouvindo. Na verdade, você até imagina que há uma outra pessoa a lhe conceder atenção. Sendo mais realista ainda, acreditamos que é uma espécie de cópia de nós a ouvir todos os nossos lamentos e expectativas.

Ok. Pelo tom, o que era dito tinha realmente importância. Tanta importância que ele nem reparou nos números discados.

03 dezembro 2006

(Esperando no) Elevador - Parte III

- Desce?
- Não, sobe.
- Ok, não vou esperar outro mesmo.

Um elevador é, certamente, um dos piores lugares da terra em que você entra espontaneamente. É terrível a agonia de olhar para o marcador de andares, torcendo para que aquele indivíduo que está ao seu lado não comece com nenhum papo de chuva ou sobre a maldita reunião condominial que ninguém dá a mínima.

Na verdade, ninguém se importa com nada que é discutido em um elevador. Falando sério, nada que seja discutido em um condomínio é de importância, apenas que queremos dar o nosso dinheiro ao síndico e torcer para que ele seja o menos corrupto possível.

Leia-se: roube sem a gente perceber.

E aqui estou, no elevador. Ao meu lado alguém que nunca vi na vida, com barba de um dia, chinelo, sem aliança e o jornal recém-apanhado na portaria.

Isso às duas horas da tarde de um terça-feira.

Desconfio que ele esteja morto. Tenho certeza que ele acha que não.

25 novembro 2006

Crônica de um morto - parte II

Eu ainda estou morto, você não. Apesar disso, a minha fila diminui, agora sim, como a sua. Assim que chegar a minha vez, terei um resquício de vida, por mais estranho que isso possa parecer.

A sua vez não chegou, a minha sim. Subitamente, a cor volta ao meu corpo. Sou avisado que, pelos meus antecendentes, tenho mais cinco meses de vida. Agradeci, desejei boa sorte a todos e fui embora olhando o relógio, estranhando essa história de "cinco meses de vida".

O calendário não mente e não dá trégua. Estou em uma encruzilhada: agarro-me, desesperado, ao fiapo de esperança a mim oferecido ou, corajosamente, rejeito-o, atrás de uma nova vida, mesmo que, momentaneamente, indigna?

É assim que eu levanto-me, é assim que eu me deito. Pela manhã, decerto, encontram-se os piores minutos do dia. Dez, para ser mais preciso. Do exato momento em que deixo a cama até a saída do banheiro.

Só há uma coisa que supere a agonia dos momentos que precedem o cruel encontro diário com o espelho: o horror ao perceber, dia após dia, que a cor que vemos não nos pertence.

O horror, o horror...

Crônica de um morto - parte I

Eu estou morto. Você não está. Pode parecer meio óbvio, mas é sempre bom lembrar que, às vezes, o que está na nossa cara, pode estar um pouco acima dela.

Não lembro como morri. Talvez tenha sido imprudência, pois, afinal, relacionar-se com os outras pessoas não deixa de ser um reconhecimento de que somos descuidados e fracos. Que necessitamos de um simples sinal.

Se eu tivesse ficado em casa, rabiscando uma folha com uma caneta, sentado ao chão, nada teria me acontecido.

Nada!

Quantas vezes eu contei em uma árvore morta o que me fazia sair de casa todos os dias? Rabisquei fórmulas em que tentava equacionar os prós e contras de ter que dar bom dia para o porteiro e ganhar o asfalto?

Nunca soube a diferença entre meia-noite e meio-dia, ou entre as seis horas da tarde e as nove da manhã. Talvez, agora, eu entenda.

De certa forma, hoje, consegui o que eu queria: estou morto. Eu e algumas dezenas de pessoas, alinhadas de frente para uma outra, atrás de um pedaço de vidro.

A minha vez chegará. Então, poderei, enfim, contar a minha crônica.